Proteção de dados pessoais de pessoas falecidas por Covid-19

Em período de pandemia são vários os direitos e liberdades que atento o estado de emergência em que nos encontramos veem o seu exercício limitado. Essa limitação tem sido defendida em alguns países como necessária e até fundamental para o seu sucesso na contenção da doença. Veja-se o caso de países como a China, as Filipinas, Singapura, India e Paraguai onde foram implementadas duras medidas limitadoras das liberdades dos cidadãos levando a que especialistas em direitos humanos da ONU tenham instado os países a garantir que as suas respostas à pandemia fossem proporcionais, necessárias e não discriminatórias.

Embora o foco da nossa atenção deva ser sem dúvida a proteção dos cidadãos e a procura da cura para a doença, não é menor a nossa obrigação de zelar pela memória e pelos direitos daqueles que infelizmente faleceram vítimas deste vírus.

O Regulamento Geral de Proteção de Dados por via de regra não se aplica aos direitos das pessoas falecidas, salvo algumas exceções, pois não obstante o titular dos dados ter falecido, isso não significa que, por exemplo, todos os seus registos médicos se tornem automaticamente de conhecimento público. Estes podem conter informações, tais como doenças hereditárias ​​ou informação genética, relevantes para os familiares que lhes sobrevivem.

O art. 9º nº1 do referido regulamento prevê ser proibido o tratamento de dados genéticos, dados biométricos para identificar uma pessoa de forma inequívoca, dados relativos à saúde ou dados relativos à vida sexual ou orientação sexual de uma pessoa”, com as exceções previstas no nº 2 do mesmo artigo.

Portugal, e bem assim também a França, consagrou na sua legislação de proteção de dados que, a proteção de dados pessoais de pessoas falecidas será exercida “por quem a pessoa falecida haja designado para o efeito ou, na sua falta, pelos respetivos herdeiros. Os titulares dos dados podem igualmente, nos termos legais aplicáveis, deixar determinada a impossibilidade de exercício dos direitos referidos no número anterior após a sua morte.” Do mesmo modo pugnou a Alemanha ao permitir o direito de exclusão até cinco anos após a morte, bem como a Dinamarca que determinou o direito à privacidade de informações até 10 anos após a data da morte. Itália e Espanha introduziram direitos semelhantes, mas sem limitação de tempo, ao passo que a Irlanda permite inclusive a proteção em situações onde pode haver danos à reputação da família da pessoa falecida.

No cenário de pandemia em que nos encontramos e na procura pela definição de estratégias de atuação, temos vindo a testemunhar uma disputa pelo direito ao acesso a informação sobre os cidadãos infetados pelo novo Covid-19.

As solicitações de acesso a informação ocorrem entre os dirigentes locais e as autoridades de saúde regionais, as autoridades de saúde nacionais e o Ministério da Saúde, mas também entre a comunidade cientifica que após a elaboração de uma carta aberta dirigida ao Governo, viu o Primeiro Ministro António Costa assegurar que “a DGS vai passar a libertar todos os dados anonimizados de forma a permitir o acesso livre por todas as equipas de investigação nas mais diferentes áreas”.

De ressalvar, contudo, que em todas as situações elencadas e não esquecendo as especiais precauções necessárias para assegurar que a partilha dessa informação seja conforme as regras impostas pela Proteção de Dados, estamos sempre perante dados pessoais anonimizados!

No dia 29 de março, o Correio da Manhã publicou um artigo intitulado “Os rostos e os nomes das vítimas do coronavírus em Portugal” no qual listava com recurso a fotografia a identificação de 17 pessoas falecidas vítimas do Covid-19. Com o evoluir da situação nacional o título do artigo foi alterado para incluir a expressão “Coronavírus continua a ceifar vidas em Portugal.” e mais tarde “Coronavírus continua a semear tragédias. Os rostos e as histórias das vítimas mortais do coronavírus.” identificando desta feita 24 vítimas.

 

A proteção dos dados pessoais encontra-se por vezes em conflito com a liberdade de imprensa consagrada na Lei da Imprensa, mas também no próprio RGPD e na Lei da Proteção de Dados, conferindo a exceção aos direitos mencionados nomeadamente nos seguintes casos:

  • Se o tratamento for necessário por motivos de interesse público importante, com base no direito da União ou de um Estado-Membro, que deve ser proporcional ao objetivo visado, respeitar a essência do direito à proteção dos dados pessoais e prever medidas adequadas e específicas que salvaguardem os direitos fundamentais e os interesses do titular dos dados;
  • Se o tratamento for necessário por motivos de interesse público no domínio da saúde pública, tais como a proteção contra ameaças transfronteiriças graves para a saúde ou para assegurar um elevado nível de qualidade e de segurança dos cuidados de saúde e dos medicamentos ou dispositivos médicos, com base no direito da União ou dos Estados-Membros que preveja medidas adequadas e específicas que salvaguardem os direitos e liberdades do titular dos dados, em particular o sigilo profissional.

O caso do Correio da Manhã afigura-se como um exemplo claríssimo de violação da Lei de Proteção de Dados. A decisão de publicar um artigo com o único propósito de publicitar a identificação, com recurso a fotografia, dos dados pessoais de pessoas falecidas em Portugal vítimas do coronavírus é de uma irresponsabilidade gritante, não só pelo facto de se desconhecer como obtiveram acesso à informação especialmente sensível que partilham, em particular ao registo fotográfico, como atento o direito à privacidade e reserva de vida privada e familiar devida às pessoas falecidas e às suas famílias que não obstante a situação dramática em que se encontra são deixados vulneráveis por uma publicação que em nada defende o interesse e a saúde públicos. Em Portugal, a curiosidade que move alguns cidadãos, fazendo-os solicitar junto dos seus representantes informação sobre a localização das pessoas infetadas tem sido, e bem, combatida. Informação sobre medidas de prevenção da doença, combate à estigmatização através da aprendizagem e da partilha de factos sobre o Covid-19, sensibilização para o facto de que os vírus não têm como alvos grupos raciais ou étnicos específicos, bem como o modo de transmissão do Covid-19 são exemplos dessa ‘batalha’ comunicacional. O mesmo cuidado e atenção são devidos aqueles que, vitimados pela pandemia, se encontram impedidos de defender os seus direitos.

A função do jornalismo em situação de crise é fundamental devendo manter o público informado para que este possa tomar decisões. Num momento de pandemia como o que vivemos, este dever é ainda mais importante. Bem como o dos cidadãos de zelarem pelo cumprimento do Estado de Direito, pela defesa dos cidadãos mais vulneráveis, pelo rigor jornalístico e dos seus intervenientes desempenharem as suas funções com maior prudência e ponderação.

Obrigada por estar desse lado

Margarida Vieira Mendes