O Supremo Tribunal de Justiça confirmou em acórdão de 14 de janeiro de 2021, a condenação de um homem ao pagamento de mais de 60 mil euros à ex-companheira pelo trabalho doméstico que esta desenvolveu ao longo de quase 30 anos de união de facto.
Numa decisão que acreditamos poderá vir a revolucionar futuras decisões judiciais em primeira instância, o STJ refere que o exercício da atividade doméstica exclusivamente ou essencialmente por um dos membros da união de facto, sem contrapartida, “resulta num verdadeiro empobrecimento deste e a correspetiva libertação do outro membro da realização dessas tarefas”.
O STJ considera que isso se traduz num enriquecimento do membro do casal que não participa no trabalho doméstico, uma vez que lhe permite beneficiar do resultado da realização dessas atividades sem custos ou contributos.
O caso ora apreciado pelo STJ resulta da interposição de recurso apresentado pela mulher no Tribunal da Relação competente, após ter visto a sua pretensão negada no Tribunal de Primeira Instância, tendo este decidido: “Não sendo o trabalho despendido no lar judicialmente exigível no âmbito da união de facto, a sua prestação como contribuição para a economia comum configura-se como cumprimento espontâneo de obrigação natural.”
Uma obrigação natural, esclarecemos, consiste em algo que, sendo moralmente devido, não pode ser judicialmente exigido.
O STJ refere no seu acórdão que, em situações de evidente desequilíbrio, “não é possível considerar que a prestação do trabalho doméstico e os cuidados, acompanhamento e educação dos filhos correspondem, respetivamente, a uma obrigação natural e ao cumprimento de um dever”.
“Desde há muito que a exigência de igualdade é inerente à ideia de justiça, pelo que não é possível considerar que a realização da totalidade ou de grande parte do trabalho doméstico de uma casa, onde vive um casal em união de facto, por apenas um dos membros da união de facto, corresponda ao cumprimento de uma obrigação natural, fundada num dever de justiça”, descreve o acórdão.
“Pelo contrário, tal dever reclama uma divisão de tarefas o mais igualitária possível, sem prejuízo da possibilidade de os membros dessa relação livremente acordarem que um deles não contribua com a prestação de trabalho doméstico, na lógica de uma especialização dos contributos de cada um”, acrescenta.
Como se fixou o valor do trabalho doméstico:
Para fixar o valor do trabalho doméstico, o tribunal adotou como critério o salário mínimo nacional, multiplicado por 12 meses, durante os anos de vivência em comum. Ao total, retirou um terço, considerando a necessidade de afetação de parte desse valor às despesas da mulher.
Será importante esclarecer que a decisão proferida pelo STJ não condena o réu na restituição do valor do serviço doméstico prestado pela autora durante o período de união de facto, mas sim no montante que se entendeu que esse serviço contribuiu para que este adquire-se património próprio. Terminada a união de facto, a conjugação de esforços dos companheiros que permitiu a aquisição daquele património cessou, e, consequentemente, a condenação é na restituição do montante em que se quantificou a contribuição da autora, traduzida na prestação de trabalho doméstico, para aquisição de bens que não são propriedade desta.
O reconhecimento do trabalho doméstico na legislação nacional:
Embora este direito esteja consagrado no Código Civil português desde a reforma de 2008, no artigo 1676 nº2 ao prever “a valorização do trabalho realizado com o cuidado da família e do lar”, ou seja com as tarefas domésticas, a norma não tinha até então tido consequências práticas significativas, dado que a comprovação dos factos se revela difícil bem como a fórmula de cálculo do montante a atribuir.
Note-se que no caso em análise a Autora peticionava uma montante de 240.000,00€ tendo lhe sido reconhecido afinal pelo STJ apenas o valor de 60.000,00€.
No entanto e apesar de o acórdão do STJ agora divulgado não criar precedente, nem vincular os tribunais, servirá como orientação jurisprudencial para as decisões futuras.
No atual quadro em que o número de casais a viver em situação de União de facto é cada vez maior, louvamos esta decisão do STJ, que não só concretiza a equiparação da União de facto à do casamento, mas sobretudo que reconhece que “o trabalho doméstico, embora continue a ser estranhamente invisível para muitos, tem obviamente um valor económico e traduz-se num enriquecimento enquanto poupança de despesas”.