O recurso ao papel comercial enquanto forma de financiamento sofreu um duro revés com o caso BES, que levantou as mais diversas dúvidas acerca deste instrumento financeiro. Volvidos 7 anos da medida de resolução aplicada ao Banco Espírito Santo, chegou o tempo de regressarmos ao tema e percebermos as principais características do papel comercial.
As razões que presidem à escolha do papel comercial como forma de financiamento das empresas são o reflexo de opções fundamentais tomadas por estas acerca da estrutura do seu capital.
Estas opções são, naturalmente, condicionadas por fatores como o risco empresarial, o tratamento fiscal, os custos de insolvência, de agência, a flexibilidade financeira, a dimensão da empresa, a sua administração, a taxa de crescimento e as condições de mercado. Desta forma, as características de um produto financeiro assumem uma importância fulcral no processo de tomada de decisão acima descrito.
As exigências dogmáticas de tratamento desta questão apontam para a definição das características do papel comercial com recurso à análise do quadro legal vigente – isto para que, tudo somado, as reais características deste produto encontrem a devida correspondência na lei.
Nesta senda, uma primeira característica associada a este produto prende-se com o seu carácter representativo de dívida de curto prazo. O Decreto-Lei 69/2004, de 25 de março, na redação que lhe é conferida pelo Decreto-Lei n.º 29/2014 de 25 de fevereiro, consagra no seu art.º 6.º a proibição da emissão de valores mobiliários de natureza monetária de prazo inferior a um ano que não cumpram as disposições deste diploma legal.
Esta natureza de curto prazo revela a função do financiamento com recurso à emissão de papel comercial enquanto supressor de necessidades de liquidez imediatas ou défices de tesouraria. Enquanto o recurso a financiamento de médio/longo prazo permite mais estabilidade e capacidade de planeamento ao mutuante, o recurso a financiamento através da emissão de papel comercial permite uma liquidez imediata e uma capacidade de disciplina maior por parte das empresas que subscrevem papel comercial como garantia do cumprimento de contratos de financiamento bancário, mas importa usualmente uma remuneração de capital mais elevada.
Verdade é que a natureza do crédito de curto prazo associado ao papel comercial assume contornos menos claros em situações de vreolving. Este ponto leva a uma correlação entre o prazo de maturidade do papel comercial e o risco associado à sua subscrição: quanto mais tempo é mantido um investimento que visa suprir necessidades imediatas de tesouraria, maior parece ser a necessidade da entidade emitente de fazer face a esses cenários financeiros – por conseguinte, maior parece ser a probabilidade de dificuldade em proceder ao pagamento do produto e respetivos juros na data do vencimento num cenário de sucessivos revolvings.
Em Portugal, o supra mencionado Decreto-Lei 69/2004, de 25 de março define precisamente o conceito de papel comercial com recurso ao prazo de dívida que este representa – um ano. Embora um ano constitua um teto, é frequente a fixação do prazo de maturidade numa média muito próxima dos 365 dias.
Porém, a experiência nos Estados Unidos da América aponta para prazos de maturidade substancialmente mais curtos – entre 5 a 45 dias de maturidade, fixando-se a média nos 30-35 dias e nunca ultrapassando os 270 dias . Neste sistema, não deixam de ser comuns os sucessivos rollovers, mas os cenários de risco e, sobretudo, de liquidez são substancialmente distintos do caso português.
Uma fixação do prazo de maturidade num limite mais curto permite as sucessivas renovações e colocações do produto no mercado, diminuindo substancialmente os riscos associados: não é expectável que, no prazo de 5 ou até mesmo 30 dias após a aquisição, o emitente se encontre em cenário de impossibilidade de fazer face ao reembolso do montante mutuado. Tal entendimento sai reforçado se tivermos em mente uma primeira aquisição logo após emissão, tendo em conta os apertados rácios de autonomia financeira a que os emitentes se encontram sujeitos.
A análise das características do papel comercial através de um método de ponderação entre vantagens e desvantagens associadas à sua emissão obriga a uma ponderação da perspetiva do emitente mas também, especialmente no caso português, do investidor. Contudo, as características deste valor mobiliário enquanto vantagens para os investidores dependem, em larga medida, da situação financeira e patrimonial do emitente.
Assim, se a grande vantagem do papel comercial para o emitente se centra na maior liquidez, tal depende em larga medida do encurtamento do prazo de maturidade e capacidade contínua de rollover ou troca por outro instrumento. Face às experiências bem sucedidas de mercado de papel comercial em países com tradição de recurso ao mercado de capitais como forma de financiamento (ao invés do financiamento bancário), não se alcança como se fixa um prazo máximo de tal forma dilatado para o vencimento deste produto .
Por outro lado, do ponto de vista do investidor, embora inexista um valor nominal mínimo associado ao papel comercial, verdade é que os emitentes insistem no sentido da fixação de valores mínimos consideravelmente elevados para a subscrição deste produto. A escolha por emissão de papel comercial de valor nominal unitário igual ou superior a cinquenta mil euros justifica-se do lado dos emitentes pela não sujeição aos requisitos do n.º 1 do art.º 4.º do Decreto-Lei 69/2004, de 25 de março.
A teleologia desta dispensa face a um elevado valor nominal unitário prende-se com a presunção de que quem investe €50.000,00 na aquisição de uma unidade de valor mobiliário tem uma maior capacidade de absorver perdas de capital, revelando maior elasticidade. Assim, compreende-se a dispensa da necessidade de uma entidade que preste garantia ou a inexistência de notação de risco da emissão.
Esta questão leva a uma fácil constatação: em Portugal, a fatia de investidores com estas características, mas que não se insiram na categoria de “subscritores qualificados” a que alude a alínea b) do n.º 2 deste art.º 4 é francamente diminuta.
Conforme veremos adiante, a experiência portuguesa de comercialização de papel comercial tem sido marcada por episódios de violação das regras a que se encontram adstritos os intermediários financeiros que levaram à venda de papel comercial a subscritores que, para além de não serem investidores qualificados, não estavam preparados para suportar cenários de perda de capital – muito menos de perda integral.
Assim, esta presunção inilidível consagrada pela al. a) do n.º 2 do art.º 4.º do Decreto-Lei 69/2004, de 25 de março não atendeu à praxis em matéria de comercialização deste produto. Melhor seria que, nos casos de investidores não profissionais, se mantivessem as exigências de rácio de autonomia financeira ou de obtenção de garantia, independentemente do valor nominal unitário.
Tal entendimento é consonante com a tradição de papel comercial enquanto instrumento financeiro ligado aos investidores institucionais e interligado a outras operações de carácter bancário.
Este ponto é igualmente conexo com uma conceção que olha para as entidades que emitem papel comercial como entidades que se encontram em dificuldades de recorrer a crédito bancário. Tal conceção perderia todo o sentido perante as exigências vertidas nos requisitos de emissão: se o nível de capitais próprios do emitente se encontra num patamar saudável, naturalmente não apresenta dificuldades de recurso a financiamento bancário.
Porém, ao isentar os emitentes do cumprimento de requisitos de emissão no caso de investidores profissionais ou de o valor nominal unitário ser igual ou superior a € 50 000,00, a lei torna as exceções em regra. O mesmo sucede ao tornar regra a qualificação da emissão de papel comercial como particular, por força do disposto no n.º 1 do art.º 12.º do Decreto-Lei 69/2004, de 25 de março.
Em suma, por via destas exceções, a esmagadora maioria dos programas de emissão de papel comercial de empresas portuguesas não cumpre nenhum dos requisitos de emissão previstos no n.º 2 do art.º 4.º do Decreto-Lei 69/2004, de 25 de março, elevando consideravelmente o risco associado à operação.
Se a regra de facto é a inexistência de observância destes requisitos, fácil é de perceber que uma das características intrínsecas ao papel comercial – o baixo risco de incumprimento associado, por comparação com outros produtos – não encontra correspondência na lei portuguesa.
Por outro lado, foi supra referido que as vantagens associadas ao investimento em papel comercial dependem em larga medida das características do emitente. As pequenas e médias empresas estão normalmente excluídas do mercado de capitais, restando-lhes o recurso ao crédito bancário não só pela falta de estrutura, mas igualmente pela ausência de rating.
Segundo dados do INE, as micro, pequenas e médias empresas constituíam, em 2016, 99,9% do tecido empresarial português. Assim, nesta linha de raciocínio, no que ao mercado português concerne, resta 0,1% do tecido empresarial potencialmente apto à emissão de papel comercial. Este não pode deixar de ser um dado relevante quando se procuram causas para a insipiência do mercado de comercialização de papel comercial em Portugal.
Por tudo o acima aduzido, facilmente se alcança serem vários os motivos associados à própria natureza do papel comercial que concorrem para a reduzida dimensão do seu mercado em Portugal e as razões pelas quais não se alcança um verdadeiro aproveitamento das potencialidades deste instrumento.