Na sequência das alterações ao regime do Golden Visa (ver mais no nosso artigo aqui), torna-se essencial perceber o fim a que se destina o imóvel que poderá ser objeto do investimento e a forma de alteração desse fim.
Em primeiro lugar, não existe uma definição legal para os conceitos de uso habitacional e não habitacional de um imóvel e os critérios que existem não são unitários, sendo diferentes se estivermos a falar do regime do arrendamento, do alojamento local ou do licenciamento municipal de obras privadas.
Assim e por exemplo, o inquilino estaria a incumprir o contrato de arrendamento de longa duração com fins habitacionais se destinasse o imóvel ao alojamento local, por alterar o fim a que se destina o imóvel?
Ora, o que se pergunta verdadeiramente é se o fim que estava a ser dado ao imóvel (que pode ser considerado comercial ou de serviços) contrariava o fim habitacional a que se destina o imóvel – previsto na escritura de propriedade horizontal e na própria licença de utilização.
Os Tribunais foram chamados a dirimir estas questões por diversas vezes e com resultados bastante díspares. Mesmo dentro do mesmo Tribunal, as respostas dadas foram diferentes.
Assim, o Tribunal da Relação do Porto chegou a pronunciar-se no sentido de o fim habitacional de um imóvel não impedir o seu proprietário de a afetar a alojamento local de turistas, argumentando que “O conceito de alojamento, mais restrito, acha-se contido no conceito de habitação, de maior abrangência” – acórdão de 10/01/2019 (Proc. 25192/16.3T8PRT.P1, Rel. Judite Pires), disponível aqui.
Porém, em acórdão de 27/04/2017 (Proc. 13721/16.7T8PRT.P1, Rel. Ana Lucinda Cabral), disponível aqui, o mesmo Tribunal adotou a posição contrária, sumariando no sentido de “…quando uma fracção se destina a habitação, quer dizer que se trata de uma residência, de um domicílio, lar, ou seja, de um espaço de vida doméstica com a inerente necessidade de tranquilidade e sossego, não cabendo nela o alojamento local.”.
Daqui resulta que o conceito de “uso habitacional” é um conceito indeterminado, suscetível de interpretações diferentes – a começar pelo investidor e continuando pelo SEF, podendo terminar nos Tribunais.
Como perceber, então, qual o fim a que se destina o imóvel?
Assim, para perceber qual o fim a que se destina o imóvel, é fundamental a consulta de três elementos:
- A licença de utilização, assim como a ficha técnica de habitação.
- O título de constituição da propriedade horizontal, quando falamos de frações autónomas de edifícios constituídos em propriedade horizontal e
- Caderneta predial urbana, de onde se alcança o fim a que se destina o imóvel, para efeitos fiscais.
Os casos de dificuldade acrescida na deteção da afetação prendem-se com os imóveis construídos antes de agosto de 1951 – caso em que é dispensada a existência de licença de utilização. Nestes casos, como não existe qualquer escritura de propriedade horizontal ou licença de utilização, resta a informação constante das Finanças.
Mas poderá não ser o único elemento, não se encontrando razões para que não possa prevalecer a regra de que são considerados quaisquer elementos de prova em direito admitidos.
Porém, espera-se que o SEF dê um peso maior aos elementos formais, em vez dos elementos substanciais que mostram como é que imóvel se encontra a ser utilizado.
Assim, se na documentação o fim a que se destina o imóvel for habitacional, mas estiver a ser usado como escritório (ainda que durante anos consecutivos), o investidor poderá ter dificuldades em fazer prevalecer junto do SEF a afetação não habitacional que permita aceder ao golden visa.
Da mesma forma, é conveniente que um imóvel que se destine ao alojamento local apresente formalmente esse uso na sua documentação – evitando dúvidas e dificuldades no procedimento do golden visa.
Importa igualmente referir que um edifício (em especial os prédios, constituídos ou não em propriedade horizontal), podem apresentar frações ou espaços suscetíveis de utilização independente com fins diferentes. Assim, o mesmo edifício pode ter usos diferentes.
Para efeitos de investimento para a obtenção do golden visa, parece claro que apenas os espaços do edifício que apresentem afetação não habitacional se tornam elegíveis nas áreas excluídas das regiões autónomas da Madeira e dos Açores ou das constantes da Portaria n.º 208/2017 de 13 de julho, desde que envolvam os valores descritos no respetivo regime.
A aquisição de um edifício em propriedade total com diversas áreas suscetíveis de utilização independente/frações autónomas e que apresentem usos diferentes (entre as quais habitacionais) não parecem enquadrar-se na categoria de imóvel com fim não habitacional, elegível para a obtenção do visto.
A situação pode ser diferente se for possível distinguir estas diferentes unidades na escritura do imóvel, sendo atribuída, a cada uma, um valor de aquisição diferente. Assim, se o valor atribuído às unidades que não se destinam à habitação atingir os valores mínimos de investimento, poderá esta aquisição ser considerada elegível. Porém, teremos de aguardar a emissão de diretrizes por parte do SEF ou aguardar o desfecho dos primeiros casos ao abrigo destas alterações, para entender estes pontos com mais certeza.
Tudo isto reforça decididamente a necessidade de acompanhamento do investidor no momento de escolha do seu objeto de investimento. Sem uma due diligence adequada que permita perceber verdadeiramente o fim a que se destina o imóvel, o investidor poderá deparar-se com a circunstância de adquirir um imóvel que não se adequa aos seus objetivos de concessão do visto.
Procedimento de alteração do fim a que se destina o imóvel
Em qualquer imóvel, será necessário percorrer o procedimento camarário de licenciamento.
A alteração ao uso fixado em licença de utilização já emitida carece sempre de aprovação pelo município, dando origem a uma nova licença de utilização.
Esta alteração poderá ou não resultar de obras.
Quando resulte da realização de obras, (elas próprias) podem ou não estar sujeitas a licenciamento municipal.
Não necessitam de licenciamento,
– as obras de simples conservação, restauro, reparação ou limpeza, quando não impliquem modificação da estrutura das fachadas, da forma dos telhados, da natureza e da cor dos materiais de revestimento exteriores.
– as obras no interior de edifícios não classificados ou de fração autónoma quando não impliquem modificações da estrutura resistente das edificações, das fachadas, da forma dos telhados, das cérceas, do número de pisos, ou do aumento do número de fogos.
Para se aferir do procedimento, requisitos e prazos aplicáveis concretamente a cada caso, temos primeiro de perceber a zona onde o imóvel se localiza, e o tratamento que a Câmara atribui a essa zona.
Ou seja, o primeiro passo passa por perceber se saber se o imóvel se localiza em área abrangida por plano de pormenor ou alvará de loteamento, plano de urbanização ou plano diretor municipal.
Depois, o procedimento de licenciamento de obra é composto pelas seguintes fases:
- O Requerimento Inicial, que deverá ser instruído com o projeto de arquitetura
- Saneamento e apreciação liminar, onde é feita uma avaliação inicial e mais superficial acerca da conformidade do requerimento e demais elementos.
- Apreciação do projeto de arquitetura
- Apresentação dos projetos das especialidades – que deverá ser feita pelo interessado no prazo de 180 dias a contar do ato que aprova o projeto de arquitetura
- Consulta às entidades que devam emitir parecer, autorização ou aprovação relativamente a cada um dos projetos apresentados
- Deliberação da câmara municipal para emissão de licença de construção
- Emissão do alvará de licença de construção
Concluída a obra, o presidente da câmara municipal emite, por fim, a licença de utilização.
E quando a alteração do fim a que se destina o imóvel não resulte de obra ou resulte de obra não sujeita a licenciamento?
Para a emissão de nova licença sem a realização de obras, é necessário realizar uma vistoria municipal destinada a verificar se o imóvel reúne os requisitos legais para o fim pretendido.
Neste caso, o requerimento do interessado terá de ser instruído com:
- Planta do imóvel, com identificação do respetivo prédio;
- Documento comprovativo da legitimidade para requerer a alteração pretendida (p.ex., a certidão permanente do registo predial que comprove a titularidade do imóvel ou, no caso das sociedades comerciais, esta certidão deverá ser acompanhada da certidão permanente do registo comercial e eventualmente ata da assembleia geral que autorize a referida alteração);
- Cópia do anterior alvará de licença de utilização, quando exigível ou identificação do mesmo com o número e a data de emissão;
De ressalvar que existem determinadas atividades cujo licenciamento se encontra sujeito a legislação especial, como é o exemplo do regime jurídico da instalação, exploração e funcionamento dos empreendimentos turísticos – aprovado pelo Decreto-Lei n.º 39/2008 de 07 de março.
Quais as dificuldades que se apresentam?
Os prazos legais variam em função dos elementos que indicámos, bem como da conformidade de todos os elementos entregues.
Diz-nos, porém, a experiência, que estes prazos raramente são cumpridos e frequentemente um procedimento de emissão de licença de utilização pode demorar mais de um ano, dependendo do município em causa. Tal apresenta-se como um verdadeiro obstáculo aos planos de alteração do fim a que se destina o imóvel.
Já nos casos dos imóveis em propriedade horizontal, apenas com a alteração do título constitutivo da propriedade horizontal se poderá alterar o fim a que se destina o imóvel.
Para tanto, é necessário o consentimento de todos os condóminos – o que pode dificultar a pretensão do proprietário.
Já no caso do imóvel constituído em propriedade total (que tanto pode ser uma moradia ou prédio detido em regime de propriedade total), a vontade do proprietário será a única relevante.
Obrigado por nos ler.