Quais as implicações do Brexit e do acordo de saída do Reino Unido da União Europeia no direito de residência dos cidadãos britânicos residentes em Portugal.
Começamos por dizer que esperávamos poder encontrar-vos em melhores circunstâncias. Esperamos, no entanto, a todos vos encontrar seguros e de boa saúde.
Tempos difíceis estes em que vos escrevemos. Tempos desta pandemia que a alguns prende nas suas casas e que a outros empurra à ação em cenário de risco, a todos nos limitando a liberdade e, sobretudo, o conforto da previsibilidade do amanhã.
No entanto, e simultaneamente, mesmo longe, privados de privar, estamos ainda mais perto, mais unidos e mais preparados para o que estiver por vir, para, juntos, nos reerguermos a todos e a cada um de nós.
Dito isto, e porque acreditamos que nos beneficia a todos aproveitar este tempo para pensarmos noutros assuntos e nos preparar para o depois, seguem breves notas há muito devidas sobre o que esperar do Brexit agora com o Acordo de Saída aprovado.
Ora, portanto, até dia 31/12/2020 tudo se mantém exatamente igual, continuando a aplicar-se ao Reino Unido as normativas europeias incluindo no que toca à circulação de pessoas e bens. O Reino Unido apenas deixou de ter direito a estar representado e ter direito a voto nas instituições europeias.
É o chamado “período de transição”.
Ou seja, até 31/12/2020, qualquer cidadão britânico poderá pedir título de residência temporário quando esteja a residir em Portugal há mais de 3 meses, ao abrigo do disposto nos art.ºs 7º da Lei n.º 37/2006,
a saber, quando:
- a) Exerça no território português uma atividade profissional subordinada ou independente;
- b) Disponha de recursos suficientes para si próprio e para os seus familiares, bem como um seguro de saúde, desde que tal seja exigido no Estado membro da sua nacionalidade aos cidadãos portugueses;
- c) Esteja inscrito num estabelecimento de ensino público ou privado, oficialmente reconhecido, desde que comprove, mediante declaração ou outro meio de prova à sua escolha, a posse de recursos financeiros suficientes para si próprio e para os seus familiares, bem como disponha de um seguro de saúde, desde que tal seja exigido no Estado membro da sua nacionalidade aos cidadãos portugueses;
- d) Seja familiar que acompanhe ou se reúna a um cidadão da União abrangido pelas alíneas anteriores.
Independentemente do Brexit, os cidadãos do RU conservam o direito à residência temporária nos termos do disposto no art.º 9º da mesma Lei – ou seja – enquanto se mantiverem as circunstâncias ao abrigo das quais adquiriram este direito nos termos do disposto no citado art.º 7º.
Para efeito de contagem do tempo de residência para efeitos de aquisição do direito à residência permanente – 5 anos – dispõe o nº 4º do art.º 10º da Lei 37/2006, que a continuidade da residência, mesmo após o Brexit, não é afetada por ausências temporárias que não excedam os 6 meses consecutivos por ano. Ausências mais prolongadas serão desconsideradas apenas em casos muito específicos, tais como cumprimento de obrigações militares, ou, até 12 meses no máximo, quando por motivos justificados tais como destacamento profissional para outro país, doença, gravidez ou parto, estudos ou formação profissional (art.º 10º nº 4 da Lei 37/2006).
Mas quanto tempo tenho de permanecer em território nacional?
Porque é uma questão colocada diversas vezes, cabe esclarecer que o facto da continuidade da residência não ser afetada por ausências temporárias que não excedam os 6 meses, não significa (para efeitos da residência europeia) que tenham de permanecer em território nacional durante 6 meses.
Nos termos do disposto no art.º 279º do Código Civil, o primeiro dia de contagem dos períodos de ausência é o dia seguinte ao da partida do território nacional. Na prática, para perder o direito à continuidade dos 5 anos para residência permanente, o cidadão europeu teria de se ausentar, por exemplo, a 31 de maio e regressar a Portugal depois de 31 de dezembro. Qualquer vinda a Portugal durante este período, implicaria um reinício na contagem dos 6 meses na ausência seguinte.
Os 183 dias de permanência em Portugal é exigência apenas para efeitos de residência fiscal (importante no caso da manutenção do Estatuto de Residente Não Habitual (NHR) ou no caso da manutenção do direito de residência temporária de cidadãos de países terceiros). Esta matéria em nada é alterada pelo Brexit.
Os cidadãos britânicos que estejam ou venham a estar até 31/12/2020 a residir legalmente em território Português há mais de 5 anos, podem pedir residência permanente, sem que tenham de fazer prova das circunstâncias previstas no art.º7º – assim cfr art.º 10º da Lei 37/2006.
De notar, ainda, que, apesar do processo estar simplificado quando os requerentes disponham do título de residência temporário emitido pelas Câmaras Municipais, o direito à residência pode, em conformidade com o art.º 21º da referida Lei e ao abrigo das disposições comunitárias, ser provado por recurso a qualquer meio de prova.
É claro que a apresentação do certificado emitido há 5 ou mais anos, simplifica em muito o processo, obviando à necessidade de um procedimento administrativo enxertado no processo de emissão do cartão de residência permanente.
Segundo a diretiva, o direito adquirido à residência permanente só é perdido quando o titular se ausente do território nacional por um período que exceda 2 anos consecutivos. No entanto, e nos termos do acordo (art.º 11º, e 15º nº 3 do texto do acordo), este prazo passará para 5 anos.
Esta alteração não terá consequências práticas durante o período de transição se o prazo inicial de 31/12/2020 se mantiver. Contudo, e se o mesmo for prorrogado por mais 1 ou 2 anos até julho, parece-nos que o único prazo a ser considerado terá de ser o de 5 anos para efeitos de aferição da manutenção do direito de residência.
Já como explicado aqui uma vez com 5 anos de residência nos últimos 15 anos, é sempre possível pedir a nacionalidade portuguesa.
E o que acontece após o período de transição?
O Reino Unido será considerado um país terceiro à zona Schengen, que não providencia direitos de livre circulação de pessoas.
Poderemos então, agora, finalmente, saber o que vai acontecer depois da efetiva saída do Reino Unido, certo? Não exatamente.
Até à data, não existe informação concreta sobre o que sucederá após o período de transição, que até pode ser adiado por um 1 ou 2 anos se por acordo das partes até 1 de julho.
E o mais provável é que o período de transição seja mesmo prorrogado, considerando não só a incerteza do cenário atual em que vivemos face à pandemia do COVID 19, como o facto de que Michael Barnier, mandatado para mediar e orientar as negociações, se encontra em quarentena forçada pela infeção do vírus que infelizmente o vitimou.
Durante este período, a União Europeia e cada um dos 27 Estados Membros, negociarão acordos específicos com o Reino Unido, sendo certo que daqui poderá resultar uma miríade de especificidades impossíveis de antecipar.
Contudo, o que existe, isso sim, são diretrizes, orientações, princípios que as partes se comprometeram a respeitar na condução das suas negociações e nos acordos a estabelecer. Isto, claro, pressupondo que o Reino Unido cumpre com as exigências do acordo, designadamente as respeitantes às fronteiras entre a Irlanda e a Irlanda do Norte.
Estas orientações constam da Declaração Política anexa ao Acordo de saída, e no mandato negocial aprovado pelo Conselho da União Europeia.
De notar que nenhum dos Estados Membros nem o Reino Unido podem aprovar legislação contrária ao texto do acordo. Qualquer cidadão pode invocar diretamente o seu texto perante qualquer entidade ou tribunal, mesmo quando não exista legislação interna do país de acolhimento.
São várias as matérias acauteladas no acordo de saída e declaração política e para as quais novas regras terão de ser estabelecidas e acordadas com o Reino Unido. Aqui focar-nos-emos exclusivamente no âmbito das orientações previstas para o direito de residência dos cidadãos da EU e Reino Unido – após terminado o período de transição, já que, como vimos, até lá, a aplicação das regras europeias mantêm-se.
Princípio orientador das negociações
O princípio orientador das negociações nesta matéria, a acautelar no final do período de transição, será sempre o de proteger as escolhas de vida dos cidadãos do RU e da EU quando optaram por viver, trabalhar ou estudar em qualquer um dos 28 estados membros.
É preciso estar consciente que esta transição de Cidadão da União Europeia para Cidadão do Reino Unido e vice-versa com estatuto de residência especial após o Brexit, poderá não ser automática. Dependerá das negociações do Reino Unido com cada Estado Membro.
Poderá, assim, vigorar um “sistema constitutivo” ou um “sistema declarativo” (Cfr art.º 18º e 19º do Acordo).
No primeiro caso, o Estado de acolhimento poderá exigir aos cidadãos abrangidos pelo acordo do Brexit, que requeiram especificamente a alteração do estatuto de residência.
No Reino Unido, será este o sistema a vigorar para os cidadãos nacionais dos outros Estados Membros.
No sistema declarativo, o benefício dos direitos previstos no acordo pelos cidadãos abrangidos é automático. Neste caso, ainda assim, os beneficiários deverão receber um documento de residência, que poderá ser digital, acompanhado de uma declaração de que foi emitido nos termos do presente Acordo.
Portanto, o acordo do Brexit parte sempre do pressuposto de que esta transição irá ocorrer, e pretende, desta forma, uniformizar o mais possível a forma como tal transição irá ocorrer, determinando as regras que lhe servirá de base.
Quem é abrangido pelo acordo de saída no que diz respeito ao direito à residência?
São expressamente abrangidos:
– todos os cidadãos da UE que residam no Reino Unido bem como cidadãos nacionais do Reino Unido que residam em qualquer um dos 27 Estados Membros da União Europeia no final do período de transição e que ali permaneçam a residir – desde que a sua residência esteja em conformidade com a legislação da EU em matéria de livre circulação.
Ou seja, face ao Brexit, como especulado aqui estarão em vantagem os cidadãos portadores de título de residência válido (art.º 14º ou 16º da Lei 31/2006). Contudo, em Portugal, e porque assim já disposto na Lei n.º 27-A/2019 resultante do Plano de Contingência aprovado em Conselho de Ministros numa eventual saída do Reino Unido sem acordo, presume-se que se irá sempre acautelar a situação do cidadão do Reino Unido que prove residir legalmente em território nacional. Aconselhamos vivamente a não esperar para descobrir se será assim, e para aproveitar o período de transição para regularizar a sua situação.
-Os membros da família dos cidadãos mencionados mesmo que ainda não vivam no país de acolhimento e que a ele se pretendam juntar;
– As crianças, em qualquer circunstância;
– Os trabalhadores fronteiriços;
De referir que, em conformidade com o disposto no 2º paragrafo do art.º 11º do Acordo do Brexit, para efeito da determinação da inclusão no âmbito pessoal do acordo, as ausências por períodos superiores aos consignados no art.º 16º da Diretiva e 15º do acordo) não podem ser consideradas.
Ou seja, o titular do direito de residência temporária obtido até ao final do período de transição, continuará a ser beneficiário das prorrogativas do acordo, mesmo que se ausente por períodos superiores ao ali previstos, que apenas impactam (como já o era ao abrigo da diretiva) para efeitos da contagem dos 5 anos de residência permanente.
Que direitos são protegidos?
– Desde logo se acautela que todos os cidadãos abrangidos beneficiam plenamente da proibição de qualquer discriminação em razão da nacionalidade e do direito à igualdade de tratamento em relação aos nacionais do país de acolhimento. Assim será durante o resto das suas vidas, sempre que esses direitos tenham por base opções de vida assumidas antes do termo do período de transição. As únicas restrições serão as decorrentes do próprio direito da União ou do acordo.
– O direito de residência – os requisitos materiais de residência legal manter-se-ão exatamente os mesmos que os previstos na legislação vigente na matéria (Diretiva 2004/38/CE transporta para o ordenamento jurídico Português na Lei n.º 37/2006, de 09 de Agosto).
No caso de o país de acolhimento ter optado por um sistema de registo obrigatório ao abrigo da lei da União – o que é o caso de Portugal – a concessão do novo estatuto assentará em critérios objetivos – ou seja, perante a verificação das mesmas condições agora existentes e previstas na lei vigente.
Assim, a conversão do estatuto de residente enquanto cidadão da UE para cidadão do RU após o período de transição, deverá pautar-se pelas mesmas regras agora previstas para a residência temporária por 5 anos bem como para o direito de residência permanente.
Caso o cidadão abrangido pelo acordo disponha já do direito à residência permanente, a conversão do estatuto efetuar-se-á sem sujeição a quaisquer condições, podendo o cidadão trocá-lo gratuitamente pelo de “estatuto especial” de residente do RU ou da UE.
Ficamos, contudo, sem perceber, se o preenchimento dos requisitos para a obtenção do direito à residência temporária serão avaliados ex novo após o período de transição, aquando a conversão dos títulos, ou se estaremos perante, simplesmente, uma conversão do direito já adquirido, mantendo-se a validade dos novos títulos – ou seja, por exemplo, se, se o cidadão for residente há 3 anos ao abrigo da Lei da União, ser-lhe-á emitido um título de residência novo de 2 anos, ou um novo título de 5 anos.
E quanto ao direito à residência permanente?
No que toca à atribuição do direito à residência permanente, o critério manter-se-á o da residência legal nos 5 anos anteriores ao pedido, devendo, conforme expressamente consignado no Acordo, considerar-se como períodos de residência legal (para efeitos de residência permanente e nacionalidade, arriscamos), os períodos de residência legal anteriores à saída.
Isto significará que se um cidadão do Reino Unido residente legal num estado membro ao abrigo da lei da união, perfizer os 5 anos de residência legal após o período de transição, poderá pedir o direito à residência permanente segundo as regras da diretiva.
Esta questão tem particular importância entre nós, na medida em que, em conformidade com a Diretiva, o conhecimento da Língua Portuguesa não é exigido para os cidadãos da União Europeia, ao contrário do que sucede na aplicação da Lei dos Estrangeiros a cidadãos nacionais de países terceiros.
De notar que o cidadão abrangido pelo acordo do Brexit, para beneficiar destes direitos, não necessita de estar presencialmente no Estado de acolhimento no final do período de transição.
Ou seja, o impacto das ausências temporárias na manutenção do direito de residência temporária dos cidadãos abrangidos pelo Acordo de saída mantém-se as previstas na diretiva e suprarreferidas.
Já no que toca à residência permanente, prevê o disposto no art.º 15º nº 3 do acordo, que o direito à residência permanente uma vez adquirido, não é perdido desde que o cidadão não se ausente do Estado de acolhimento pelo período de 5 anos consecutivos, alargando, portanto, o prazo de 2 anos previsto na diretiva.
Por fim, de referir que até ao final do período de transição, ainda é possível a um nacional do Reino Unido que pretenda residir noutro Estado membro, obter direito de residência temporário segundo a diretiva, beneficiando dos mesmos direitos e obrigações decorrentes do Acordo de Saída do que todos os cidadãos que deram entrada no Estado de acolhimento antes de 01/02/2020 – desde que, e em conformidade com o disposto no art.º 11º supra referido, não se ausentem do Estado de acolhimento por período superior a 5 anos.
Ou seja, ausências até 5 anos não implicam a perda do direito à residência temporária adquirida até ao período de transição. Contudo, ausências superiores a 6 meses (ou períodos mais longos nos casos específicos previstos na Diretiva) impactam a contagem do período de 5 anos para efeitos da aquisição do direito à residência permanente após o Brexit.
E quanto à conversão dos títulos de residência?
Os procedimentos administrativos para a conversão dos títulos de residência após o Brexit estão ainda por definir, sendo certo que as orientações da UE são no sentido de se atribuir especial importância à existência de procedimentos administrativos simples e eficientes, apenas podendo ser exigido o que for estritamente necessário e proporcionado a apurar a satisfação dos critérios de residência legal.
Outros direitos abrangidos pelo Acordo do Brexit no que toca à matéria da residência são:
– Direito à segurança social – manter-se-ão os direitos dos cidadãos abrangidos ao acesso a cuidados de saúde, pensões e outras prestações de segurança social, podendo ainda receber prestações pecuniárias de um determinado Estado no país de residência;
– Direito ao livre exercício de profissão por conta de outrem ou própria pelos cidadãos abrangidos pelo acordo;
– Direito à manutenção da validade de anteriores decisões de reconhecimento de qualificações profissionais dos cidadãos abrangidos pelo acordo, com respeito pelos procedimentos pendentes.
Concluindo,
Assim, no final do período de transição, após o Brexit, a ideia será a de que os acordos bilaterais a celebrar entre o Reino Unido e os 27 Estados Membros, respeitem estas linhas orientadoras no que toca ao direito dos cidadãos que, no contexto do direito à livre circulação inerente à União Europeia, optaram por viver no Reino Unido sendo nacionais de um qualquer outro Estado Membro ou vice-versa.
Obrigada por estar desse lado